Hoje é dia 17 de janeiro de 2020.
Ano após ano, adiciono frases à minha longa lista de “coisas que ninguém te avisa”. “Ninguém te avisa que vai doer pro resto da vida”. Essa eu descobri bem cedo. “Ninguém te avisa que vai piorar em alguns momentos, com a mudança no mundo, com a mudança do vento”. Essa eu descobri com o passar do tempo. “Ninguém te avisa que às vezes o luto vem vestido de choro desenfreado, mas às vezes resolve se fantasiar de arrepio, e que machuca do mesmo jeito, só que devagar e sem nenhum alívio”. Essa eu descobri hoje mesmo.
O luto é uma coisa engraçada porque tem vida própria, por maior que seja a ironia. Ele existe alheio aos meus desejos, ignorando qualquer indisposição minha, passeando pelos dias sem a menor pressa de ir embora. Ele existe, e eu existo com ele, para ele e por ele. Não sei quem eu sou sem o buraco que ficou, porque até agora ainda não descobri quem deveria ser sem a pessoa que antes o preenchia. “Ninguém te avisa que vai ser desse jeito, meio sem propósito, meio sem motivo”. Porque ninguém sabe como vai ser. Ninguém sabe de nada, e eu sinto que ando sabendo menos a cada dia.
Hoje fazem doze anos que o meu pai morreu, e os dois últimos foram de um peso que teimou em beirar o insuportável com enorme frequência. Às vezes me pergunto como ainda suporto. E lá se vai uma semana. E cá me aparece uma distração. E mais cinquenta minutos com o meu analista. E uma conversa com alguém que talvez me entenda, talvez não. Quando a Terra gira em definitivo, respiro fundo sem saber como ainda consigo. Porque o meu pai, por muita sorte, também era o meu espelho, o meu mentor, o meu melhor amigo, e eu nunca soube onde colocar todo o amor que sentia por ele quando ele deixou de estar comigo.
Guardei esse amor em mim, por um tempo. Trancado e muito bem escondido, longe de olhares invejosos. E então aprendi a dar esse amor aos outros, ainda que aos poucos, ainda que não fosse o mesmo. Olho para esse tempo como se tivesse passado há milênios, porque nos últimos muitos meses o meu amor tem estado perdido no vazio, solto no silêncio. Não sei o que fazer com ele, então o aperto dentro do peito. Não sei o que fazer sem ele, e isso só me aperta o peito.
O meu pai vai ter sempre trinta e cinco, quase trinta e seis, anos. Eu é que estou envelhecendo. Eu é que fiquei aqui, vivendo, vendo um mundo que tira, corrói, abusa. Me agarrando aos meus enquanto ainda posso, chorando porque ainda há sofrimento. Tem horas que só há sofrimento. Então busco perspectiva e vejo que há muito mais do que isso, mas talvez todo o resto esteja, assim como o meu luto, vivendo uma fase de disfarce, andando por aí fantasiado de algo triste. Uma hora o resto volta a me trazer alegria. Eu acredito. Tenho que acreditar em muita coisa, já não me permito mais viver confortavelmente no vazio.
Exceto hoje.
Hoje o dia foi inteiramente poético. Acordei com a chuva e vou dormir com um sopro. Fazem doze anos. Que absurdo.